SEMINÁRIO ANUAL DA ARTICULAÇÃO DAS ESCOLAS E REDE DE ASSESSORES – CEFEP
23 a 26 de março de 2023 – CCM / Brasília
Análise de conjuntura eclesial
Cesar Kuzma – PUC-Rio
No último dia 13 de março, tivemos a grata alegria de celebrar 10 anos do Pontificado do Papa Francisco. Uma data simbólica e carregada de significados e implicações eclesiológico-prático-pastorais, como, na verdade, tem sido o caminhar deste pontificado ao longo destes anos. Entendemos que, devido a sua importância, este seria um ponto fundamental e necessário para começarmos a nossa reflexão e análise em nível eclesial, pois (1) Francisco trouxe um olhar novo à Igreja e nos convida a um novo dinamismo eclesial, a uma nova etapa na ação evangelizadora (EG n. 17), a uma “Igreja em saída” e a todas as periferias (EG n. 20-24), sejam elas existenciais e/ou sociais; (2) Francisco é o primeiro papa fruto do Concílio Vaticano II (digamos assim) e o primeiro papa latino-americano, tendo vivido e se alimentado das riquezas produzidas pela Igreja da América Latina (de Medellín até Aparecida) e pela Teologia del Pueblo, caso específico na Argentina, como expressão da teologia latino-americana (ver: J. C. Scannone, 2017); (3) Francisco é uma voz profética e de autoridade moral na Igreja e no mundo de hoje. Provavelmente, hoje, ele é a única liderança em nível mundial que se opõe a pautas totalizantes e discriminatórias e seus pronunciamentos possuem recepção em diversas localidades (sociais, políticas e religiosas) e apontam realidades concretas e urgentes da sociedade. Destacamos aqui: (a) a sua atitude frente aos refugiados e migrantes (episódio de Lampedusa, ainda em 2013), sendo a viagem a Lampedusa uma das primeiras ações de Francisco em direção a esta “saída”, na prática e ao que é real e urgente; (b) seu discurso em favor dos pobres e empobrecidos pelo sistema do capital e pela injustiça social – Francisco traz os pobres novamente ao centro do debate da Igreja e dá a eles um suporte teológico e oficial em seu magistério (EG n. 198). Para ele, a inclusão social dos pobres é um dever de cada cristão e de cada comunidade (EG n. 187), um chamado que deriva da graça que habita em nós (EG n. 188), portanto, é evangelização, o que exige mudança de estruturas sociais e eclesiais, em atenção a este clamor (EG n. 188), um clamor que traz rostos que doem em nós (usando aqui uma expressão de Aparecida). A opção pelos pobres implica em construir uma “Igreja pobre para os pobres”, na fidelidade ao Evangelho que nos sustenta (EG n. 198); (c) a dimensão social de sua missão, como no caso dos 3 Ts: “nenhum trabalhador sem terra, nenhum trabalhador sem casa, nenhum trabalhador sem trabalho”, e já na EG, no capítulo IV, ele aponta para a dimensão social da evangelização. Para Francisco, “evangelizar é tornar o Reino de Deus presente no mundo” (EG n. 176), e, para isso, temos as repercussões comunitárias e socais do querigma. O que implica esta “alegria”? Qual é o seu conteúdo? Entra aí a questão dos pobres, a questão econômica, política, social, a questão da paz e as forças necessárias para a sua construção; (d) a questão ecológica e de aquecimento global, a defesa de povos originários e suas culturas, apenas para trazer alguns exemplos.
Em nível mais eclesial, observamos que há uma nova forma de pastorear a Igreja e com ela o convite para a sinodalidade, que não é outra Igreja ou uma “moda”, mas uma nova forma de ser Igreja, onde “todos” são chamados à responsabilidade e onde “todos” são convidados a viver autenticamente a sua vocação batismal, num caminhar conjunto e em esperanças que se fazem coletivas: uma “Igreja sinodal”. Para isso, Francisco resgata aspectos fundamentais do Concílio Vaticano II, em especial, a eclesiologia do Povo de Deus, da LG (cap. II), ao dizer, no n. 111 da EG, que a Igreja “é mais do que uma instituição orgânica e hierárquica; é, antes de tudo, um povo que peregrina para Deus. Trata-se certamente de um mistério que mergulha as suas raízes na Trindade, mas que tem a sua concretização histórica num povo peregrino e evangelizador, que sempre transcende toda e qualquer necessária expressão institucional”. Assim, olhando para Francisco em nível global, num olhar maior, temos a novidade de sua pessoa e sua proposta missionária/pastoral, a coragem e a liberdade com que trata certos temas e a liberdade com que permite que diversos temas e abordagens se façam presentes, mesmo quando a abordagem dos temas não coincidem com o seu pensamento. Olhando para os dois últimos pontificados, este é um avanço imenso. Depois, a Igreja Católica com Francisco voltou a ter uma relevância global e as decisões da Igreja ou as repercussões de suas ações ganham manchetes e debates diversos, na grande mídia, em redes sociais e em grupos e comunidades. Acrescenta-se a isso o aumento da tecnologia e o uso dos meios de comunicação digitais por parte da Igreja. Em sua postura, há alguns deslocamentos que favorecem outras intencionalidades, que antes eram desprezadas ou não observadas com tamanha atenção. Francisco não apenas convida a Igreja a ir para as periferias, ele traz as periferias ao centro e este gesto oferece outro tom aos debates e aquilo que se constrói como discurso eclesial.
Devemos dizer também que este jeito Francisco de pastorear a Igreja gera, por um lado, apreço e admiração, mas por outro, gera conflitos, e a oposição ao papa é grande, até mesmo violenta e fortemente articulada em alguns lugares. Desde o lançamento da Exortação Evangelii Gaudium, algumas vozes críticas e ofensivas passaram a fazer parte deste processo e este cenário se torna mais conflituoso durante as duas sessões do Sínodo da Família (2014 e 2015), que leva à Exortação Amoris Laetitia. Isso segue. Mais tarde, com o Sínodo da Amazônia e, de forma mais recente, com o Sínodo da Sinodalidade e já mirando a um possível fim do pontificado, estes embates ficaram mais fortes e frequentes. Esta oposição se dá de três maneiras específicas: 1) modo explícito, por autoridades episcopais e outras lideranças; 2) na recusa de suas propostas; 3) na indiferença e na falsa recepção de sua palavra. Observamos este movimento mais nos EUA e na Europa, embora na América Latina e no Brasil estas vozes contrárias também se fazem presentes. De fato, Francisco gerou esperanças e suas atitudes iniciais fizeram despertar um sentimento de primavera que estava recluso. Passados 10 anos, muita coisa mudou e novos cenários e atores se fazem presentes. Lideranças conservadoras que antes faziam parte da Cúria Romana e ocupavam altos cargos, hoje já não se fazem tão presentes. Há uma mudança em relação a estes movimentos eclesiásticos e novas vozes, algumas femininas, outras teológicas e de periferias passam a ocupar este cenário. Evidentemente que há limites em Francisco, como pessoa, bem como na sua ação e legado que vai se construindo com os anos. Aquela primavera ainda é esperada e, mesmo que se sinta o frescor, muita coisa ainda fica sem resposta. Bons passos foram dados, como a reforma da Cúria Romana e o acento forte à evangelização, mas outros ainda são necessários e tudo leva a crer que ainda há um tempo para se construir tudo isso. “O tempo é superior ao espaço”, disse Francisco na EG (n. 222) e este é um de seus princípios. Muitas respostas ainda são aguardadas e observamos que Francisco parece criar processos para que estas respostas sejam discernidas, meditadas e construídas pelas comunidades, podendo ter diferentes respostas em diferentes lugares onde o Evangelho é apresentado, e isso não é necessariamente um problema, (AL, n. 3), pois faz parte do caminho pastoral, sinodal e do contexto sociocultural de cada comunidade. Não há respostas prontas para uma Igreja que necessita caminhar rumo a uma maturidade eclesial e que esteja atenta aos sinais dos tempos, a fim de oferecer uma voz verdadeira e legítima para os nossos dias.