Guardai os mandamentos do Senhor
I. INTRODUÇÃO GERAL
Setembro nos leva a reflorescer a esperança de um novo tempo, que se chama hoje. Na liturgia deste primeiro domingo do mês, somos convocados por Deus para a fidelidade aos seus mandamentos. No Evangelho, a centralidade está na mensagem de Jesus: “Vós abandonais o mandamento de Deus para seguir a tradição dos homens”. Com essas palavras de crítica, o Senhor nos convida a examinar nossa consciência cristã, tanto pessoal quanto comunitária: cumpre-nos observar se somos fiéis aos costumes e leis humanas ou à Palavra de Deus e seus mandamentos, notando ainda o que sai de nosso coração e nos torna impuros. Na primeira leitura, o autor do livro do Deuteronômio nos convida à fidelidade aos mandamentos e às leis de Deus: elas são sempre justas e conduzem o ser humano pelo reto caminho. Na segunda leitura, Tiago convida sua comunidade e também a nós, hoje, a cumprir a lei de Deus com o coração, e não por aparências, pois a lei perfeita do Senhor é o amor.
II. COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS
1. I leitura (Dt 4,1-2.6-8)
Na primeira leitura, retirada do Deuteronômio, quinto e último livro do Pentateuco, uma espécie de últimas palavras de Moisés, Deus nos convida, pela boca desse profeta, a guardar com fidelidade seus mandamentos, sua Lei e seu ensinamento. Escutar e pôr em prática as leis e os decretos de Deus constitui condição de possibilidade para a libertação, para a entrada na terra da promessa. A libertação do povo se realizará se este for fiel à Lei de Deus. Assim é entendida a Lei de Israel: Deus quer ver seu povo livre; contudo, o povo deve observar sua Lei e seus mandamentos, pois, de fato, os mandamentos de Deus são corretos e se comparam a um remédio para a alma.
Em Dt 4,2, encontramos a ordem de não acrescentar nada à Lei, pois esta já é completa. As adições à Lei, advindas da vaidade humana, não condizem com a vontade de Deus. É preciso levar em consideração o mandamento do Senhor. Assim, a sabedoria do ser humano consiste em pôr em prática a Lei, o mandamento de Deus.
O v. 7 evoca a consciência do povo, a quem Deus criou, libertou e concedeu uma terra, fazendo-o perceber que de nenhum outro povo o Senhor é tão próximo. Outras nações têm seus deuses, mas estes não se aproximam como Adonai, que se faz amigo e caminha com seu povo. O v. 8 continua a conscientizar o povo de Deus, levando-o a refletir que nenhuma outra nação recebeu uma legislação tão justa. Por isso, devem ser fiéis a Deus, que se torna próximo, salva e, por isso, quer que seu povo observe seus mandamentos.
2. II leitura (Tg 1,17-18.21b-22.27)
Tiago, importante apóstolo para a fé cristã, convida a comunidade dos discípulos de Jesus a reconhecer que todo dom precioso e toda dádiva vêm do céu, do Pai das luzes, daquele que é imutável e sempre bom (v. 17) – por isso, sem sombra de variação. Pois em Deus está a certeza salvífica, jamais garantida por qualquer ser humano, a não ser Cristo. Ele gerou a humanidade pela Palavra; sua Palavra veio ao mundo e se fez carne em Jesus Cristo, revelando-nos a salvação. Somos criaturas de Deus, redimidos pelo Filho (v. 18). O apóstolo recomenda que, com humildade, se acolha a Palavra que foi anunciada, capaz de salvar as almas (v. 21b). A Palavra é Cristo, que habitou entre nós (Jo 1,14). É necessário cumprir, por meio da prática, a Palavra, não como meros ouvintes. Aquilo que se escuta deve ser vivenciado nas atitudes e ações. O v. 27 conclui a segunda leitura com uma exortação prática a viver a verdadeira religião, pura e sem mancha: assistir os órfãos e as viúvas em suas tribulações e não se deixar contaminar pelo mundo.
3. Evangelho (Mc 7,1-8.14-15.21-23)
Jesus condena o rigorismo tanto dos fariseus quanto dos mestres da Lei: eles deixam de lado os mandamentos de Deus e seguem seus próprios mandamentos e leis. Nesse contexto de controvérsias é que o relato deste domingo se insere. Depois da crise vivida por Jesus na Galileia, retratada em Mc 6, quando o Senhor entrou na sinagoga de Nazaré e foi hostilizado, encontramo-nos com o relato deste domingo, que contextualiza as controvérsias com os fariseus e mestres da Lei. Estes percebem que os discípulos de Jesus não seguem o rigorismo e comem sem lavar as mãos (v. 2), enquanto os fariseus e todos os judeus observam essa prática de higiene ritual, herdada por tradição e com muito rigor (v. 3-4). Então perguntam a Jesus por que seus discípulos não observam tais tradições (v. 5).
Para responder sobre o embotamento do coração desses que os criticam, Jesus recorre a Isaías: “Este povo me honra com os lábios, mas seu coração está longe de mim” (v. 6). Em outras palavras, Jesus diz que eles vivem uma religião de aparências, de louvor, mas com uma prática distanciada de Deus. O culto que prestam é obsoleto (v. 7), pois o que ensinam são doutrinas humanas. O ponto nevrálgico está no v. 8: “Vós abandonais o mandamento de Deus para seguir a tradição dos homens”. A condenação de Jesus incide sobre a prática do esvaziamento da Lei de Deus e a absolutização dos costumes humanos, das práticas que não são reveladas por Deus, mas assentadas por pessoas com base em suas misérias e estreitas compreensões da realidade, visando ao bem de um grupo, sua hegemonia e arrogância sobre os demais.
Em seguida, nos v. 14-15, Jesus convida à percepção do que torna o ser humano impuro: não aquilo que entra pela boca, mas, pelo contrário, o que sai do coração – para o judaísmo, o lugar do juízo humano. O coração, em hebraico Lev, significa a instância da razoabilidade do ser humano, o lugar da tomada de decisões, seja para o bem, seja para o mal – o lugar do discernimento. Nos v. 21-23, Marcos apresenta, pela boca de Jesus, uma lista de pecados que saem do coração humano; “más intenções, imoralidades, roubos, assassínios, adultérios, ambições desmedidas, maldades, fraudes, devassidão, inveja, calúnia, orgulho, falta de juízo”, ressaltando, no v. 23, que essas mazelas saem do coração humano e o tornam impuro.
III. PISTAS PARA REFLEXÃO
Ajudar a comunidade na qual estamos inseridos a compreender a importância da fidelidade à Palavra de Deus. Ouvir sua Palavra nos leva à comunhão e à libertação, à busca de viver o mundo de paz. Perceber que o rigorismo não forma consciência cristã de seguimento, mas leva as pessoas ao medo. Levar a comunidade a vivenciar a humildade como dom de Deus, para construirmos uma sociedade mais justa e fraterna.
Pe. Junior Vasconcelos do Amaral*é presbítero da arquidiocese de Belo Horizonte-MG e vigário episcopal da Região Episcopal Nossa Senhora da Esperança (Rense). Doutor em Teologia Bíblica pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje), realizou parte de seus estudos de doutorado na modalidade “sanduíche”, estudando Narratologia Bíblica na Université Catholique de Louvain (Louvain-la-Neuve, Bélgica). Atualmente, é professor de Antigo e Novo Testamentos na PUC-Minas e pesquisa sobre psicanálise e Bíblia. E-mail: jvsamaral@yahoo.com.br.