“Vai, vende tudo o que tens e dá aos pobres”
I. INTRODUÇÃO GERAL
A liturgia deste domingo nos convida ao seguimento de Jesus, por meio da temática do desapego. Na primeira leitura, o sábio nos inspira a buscar exaustivamente a sabedoria, pois somente essa virtude pode nos trazer a paz, a alegria e o contentamento de vida. Na segunda leitura, o autor de Hebreus interpela-nos para que compreendamos a Palavra de Deus como realidade viva e eficaz, que nos faz vivenciar seus efeitos de paz, de justiça e de bem. Já no Evangelho, Jesus relativiza os bens materiais em vista de seu seguimento. Acolher o Reino como dom é participar de nova forma de viver a vida, tendo como paradigma Jesus, pobre e disponível para realizar a vontade do Pai. Jesus nos aconselha a primeiramente doar nossos bens aos pobres para depois segui-lo.
II. COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS
1. I leitura (Sb 7,7-11)
O texto do livro da Sabedoria nos diz que, pela oração, o sábio pediu prudência e Deus lhe concedeu (v. 7); suplicou-lhe e veio até ele o espírito de sabedoria. Hokmah é o termo hebraico para sabedoria, que vem de Deus mesmo; ela é a virtude especial que vem do Senhor. Deus, o sábio por excelência, compartilha seu dom precioso com cada um de nós. Cultivar a sabedoria é um exercício constante que nos permite viver a harmonia em meio aos descompassos da história, na qual a vida se instala e se encontra. O v. 8 diz que aquele que a busca a prefere aos cetros e tronos, pois estes são passageiros e somente a sabedoria conduz à salvação.
Diante dela, o ouro e a prata não têm nenhum valor (v. 9). O v. 10 resume a trajetória do sábio, que ama a sabedoria mais que a saúde e a beleza, dons passageiros, pois logo envelhecemos e morremos. O sábio deseja possuí-la mais que a luz, pois com a sabedoria ele pode caminhar para a luz, construir a paz e fazer valer a justiça. Para ele (v. 11), toda riqueza vem por meio dela. Ela é a fonte de todo bem e de toda construção que o ser humano deseja realizar. Sendo sábio, o ser humano vai evoluindo e transformando o mundo à sua volta, também a consciência das pessoas e os projetos os quais ele é capaz de influenciar. A sabedoria é fonte de vida plena e de toda justa riqueza.
2. II leitura (Hb 4,12-13)
O autor de Hebreus afirma que a Palavra de Deus é viva e eficaz. Sua vivacidade é fruto do Senhor, que a inspira ao ser humano. A Palavra é viva porque Deus mesmo é o autor da vida, aquele que a criou e a plasmou com seu ser (v. 12). Portanto, a eficácia da Palavra é a salvação humana: Deus nos destinou para sermos salvos e libertos. Sua Palavra serve de caminho favorável para a construção e consubstanciação dessa salvação, pois a alegria de Deus é a salvação de cada pessoa (Santo Irineu de Lião). A Palavra é cortante como espada de dois gumes: fere o coração com sua eficácia salvífica, primeiramente nos convertendo, nos conduzindo para Deus e, em seguida, nos levando a cumprir seus desígnios. Ela é cortante, divide alma e espírito, medula e articulações. Seu poder é profundo em nós, causando-nos uma afecção, oferecendo-nos suas virtudes, exigindo-nos a conversão de nossos defeitos. A Palavra ainda julga nossos pensamentos e as intenções do nosso coração. Desse modo, serve de critério para nosso agir: se fazemos ou não a vontade de Deus. No v. 13, Hebreus nos ajuda a compreender que não existe ser que possa ocultar-se diante da Palavra, pois ela é o próprio Deus, com quem nos encontramos. Diante dela, tudo está nu, e só a ela nos cabe prestar contas. Para o autor sagrado, a Palavra é o crivo da razão de ser de um fiel: é lâmpada para os pés, luz para os caminhos. É alimento que fortalece o ser humano no exercício e no cumprimento da vontade divina.
3. Evangelho (Mc 10,17-30)
Na sequência do texto de domingo passado, o Evangelho deste dia nos convida a um seguimento radical: “vai, vende tudo o que tens, dá aos pobres e segue-me”. Seguir Jesus é relativizar todas as outras coisas, a fim de que ele seja absoluto em nossa vida e acolhamos seu Reino, já presente entre nós, ao qual pertenceremos completamente na eternidade. O v. 17 nos introduz na cena: Jesus caminhava quando alguém lhe dirigiu uma pergunta, ajoelhando-se diante dele e dizendo: “Bom Mestre, que devo fazer para ganhar a vida eterna?” Tal pergunta foi respondida por Jesus com outra: “Por que me chamas de bom? Só Deus é bom” (v. 18). Em seguida, Jesus o interroga acerca do conhecimento dos mandamentos de Deus: “não matarás; não cometerás adultério; não roubarás; não levantarás falso testemunho; não prejudicarás ninguém; honra teu pai e tua mãe!” (v. 19).
A pessoa responde a Jesus que, desde sua juventude, tem observado tudo isso (v. 20). Trata-se de se justificar diante do Senhor. Para ganhar a vida eterna, porém, não basta praticar o que se pode alcançar; é necessário um fazer sagrado, que exige conversão, ajustamento à vontade de Deus. Nesse caso, Jesus oferece um olhar amoroso (v. 21), baseado nos esforços genuínos do ser humano e em seu êxito em observar os mandamentos da Lei de Deus. “Fitando-o, Jesus o amou” significa que o olhar do Senhor identifica naquele homem um desejo de ser justo e de se ajustar à vontade divina.
Esse amor conduz o chamado para o discipulado (v. 21): “Só uma coisa te falta: vai, vende tudo o que tens, dá aos pobres e segue-me”. Trata-se de um amor exigente. No judaísmo, a riqueza era tida como um sinal de favor divino, do qual resultava a obrigação de dar esmola aos pobres. Ao homem, porém, não se pede que somente dê esmolas aos pobres, mas também que compartilhe o estilo de vida de Jesus, pobre por natureza, vivendo de forma empobrecida, desapegada de bens materiais. Jesus depende apenas de Deus e por isso proclama a vinda iminente de seu Reino, que não se conforma aos reinos humanos, dos poderosos, nem os imita. Jesus é, para todos, o protótipo daquele que doou sua riqueza total aos pobres, fazendo-se pobre para nos salvar e nos enriquecer com sua graça salvífica.
O v. 22 descreve o sentimento do homem rico, incapaz de abdicar de seus bens para seguir Jesus. Seu sentido de estabilidade, sua valorização do aspecto monetário, seus bens valem mais que a aventura de seguir um “desconhecido”, que parece ser o único que o olhou com amor. Ele se sente abatido e triste, volta para casa aborrecido, porque era muito rico. Sua riqueza não lhe traz felicidade. Ao contrário, é difícil desapegar-se dela para seguir o Mestre, homem pobre de Nazaré. Fixar-se em certezas é o que parece garantir ao coração do homem o sentido de não desamparo. Com razão, Sigmund Freud, o pai da psicanálise, afirma que o constitutivo de todo sujeito humano é o desamparo. Neste caso, a riqueza parece sanar o vazio que o desamparo instalaria no coração desse homem. No entanto, é esse mesmo desamparo que faz um discípulo seguir Jesus, pois o Mestre é capaz de amar quem o segue, amor demonstrado em seu olhar para o homem rico. Do ponto de vista bíblico, há poucos olhares como esse de Jesus na Sagrada Escritura. Estamos todos, como seres desamparados, em busca de um olhar que nos ame e nos compreenda, mesmo que seja para certificar que estamos aquém da competência que Jesus demanda de nós: a radical entrega para segui-lo.
O v. 23 detalha então o olhar de Jesus para seus discípulos. Do homem, Jesus passa as vistas àqueles que o seguem, mesmo com suas imperfeições, uma vez que deixaram suas casas e famílias para estar ali, no caminho com o Senhor. No v. 25, Jesus constata e confirma: “Meus filhos, como é difícil entrar no Reino de Deus! É mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que um rico entrar no Reino de Deus!” Trata-se de imagem grotesca, concordamos. A substituição de Kamelon, “camelo”, por Kamilon, “corda”, em alguns manuscritos, e a extravagante ideia de que havia um portão em Jerusalém através do qual um camelo poderia se espremer são tentativas de abrandar essa hipérbole.
Todos ficam espantados (v. 26) e se perguntam quem poderá, afinal, ser salvo. Jesus, olhando-os novamente, diz que para as pessoas se salvarem é impossível, mas para Deus tudo é possível. A salvação é um dom, que nos cabe acolher. Para o rico não é impossível se salvar, desde que relativize sua riqueza, fazendo dela serviço aos pobres, e acolha generosamente o Reino como dom supremo. No v. 28, Pedro afirma que todos ali deixaram tudo para seguir o Senhor. O Mestre, por sua vez, responde que todo aquele que deixou tudo para segui-lo receberá o cêntuplo nesta vida e, no mundo futuro, a eternidade (v. 29-30). Jesus promete recompensas não apenas no eschaton, mas no tempo presente. A expressão “perseguições” (v. 30) parece ser uma peculiaridade redacional de Marcos, sugerindo que o discipulado implica desafios e dificuldades.
III. PISTAS PARA REFLEXÃO
Ajudar a comunidade a discernir que o dinheiro é importante, mas não é o que confere felicidade ao coração humano. É preciso ser sábio e viver com o necessário para ser feliz. O que temos em excesso pode nos impedir de seguir o Senhor. Cabe-nos pôr nossos bens a serviço dos vulneráveis. Buscar a sabedoria é fundamental para seguir Jesus, tornando-nos abertos a seu convite ao discipulado. Sua Palavra torna-se eficaz e viva à medida que somos afetados por ela e nos dispomos a servir e amar.
Pe. Junior Vasconcelos do Amaral*é presbítero da arquidiocese de Belo Horizonte-MG e vigário episcopal da Região Episcopal Nossa Senhora da Esperança (Rense). Doutor em Teologia Bíblica pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje), realizou parte de seus estudos de doutorado na modalidade “sanduíche”, estudando Narratologia Bíblica na Université Catholique de Louvain (Louvain-la-Neuve, Bélgica). Atualmente, é professor de Antigo e Novo Testamentos na PUC-Minas e pesquisa sobre psicanálise e Bíblia. E-mail: jvsamaral@yahoo.com.br.