O silêncio e a compaixão pelos outros
I. INTRODUÇÃO GERAL
Contemplamos nas Escrituras a vida humana de Jesus, que teve um corpo, criou relações, agiu como humano e manifestou a presença de Deus por meio de sua existência carnal. Aprendemos a viver conforme sua vida, seguindo seus passos e praticando seus ensinamentos.
A liturgia deste domingo nos apresenta a compaixão que Jesus experimentava diante da multidão que o seguia. As necessidades eram numerosas e de diferentes tipos (físicas, psíquicas, espirituais, materiais etc.), tal como vemos no mundo atual, com desigualdade social, guerra entre países e perda do sentido da vida.
Celebrar a Eucaristia e a Palavra de Deus significa comprometer-se com a proposta que nos é comunicada. Deus promete novos pastores para seu povo (I leitura), pois os reis estavam descompromissados com a missão. Jesus se recolhe com seus discípulos e percebe uma multidão numerosa que precisa dele (Evangelho). Ele reúne todos os dispersos, formando um só povo e derrubando os muros que nos separam (II leitura). Há um apelo para a compaixão, pois muitos vivem como “ovelhas sem pastor”.
Às vezes vivemos tão centrados em nós mesmos, que nos esquecemos das outras pessoas. Quando olhamos além e acolhemos o próximo, não nos ignoramos, mas temos um acesso diferente a nós mesmos, de outro ponto de vista. Nossa existência se enriquece com uma nova companhia, com o coração mais sensível e com nossa humanidade com maior compaixão.
II. COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS
1. I leitura (Jr 23,1-6)
Essa passagem pertence à coleção de vários oráculos relativos aos últimos reis de Judá (Reino do Sul). O trecho selecionado para a liturgia é a conclusão, na qual Deus anuncia pastores (líderes) conforme seu coração, isto é, que realizem sua vontade e sejam fiéis à aliança. Uma profecia semelhante encontra-se em Ez 34.
A perícope se inicia em forma de imprecação: “Ai dos pastores…” (v. 1). Há uma oposição aos reis, que deveriam zelar pelo cumprimento dos mandamentos e cuidar do povo (rebanho), no entanto o abandonam por causa de interesses particulares. O Senhor Deus é comparado a um pastor (Sl 23,1-4; 78,25-26; 95,7), e os reis e outras lideranças deveriam ser reflexo dessa presença divina.
A profecia se dirige contra esses maus pastores do povo. Eles o abandonaram, ocuparam-se em dispersar as ovelhas ao invés de unir e comportaram-se de maneira perversa e irresponsável (v. 2). Então, Deus vai reunir o que foi disperso, procurar o que está perdido e conduzir a lugares seguros. Em seguida, vai suscitar novos pastores para apascentar o rebanho e agir conforme os tempos messiânicos (Jr 3,15; 29,10-14; 30,10).
Enfim, o oráculo identifica uma pessoa que assumirá essa função. Deus estabelecerá um rei, descendente de Davi, que será competente, defenderá o direito e a justiça (binômio importante para os profetas bíblicos) e terá como nome “Senhor, nossa justiça” (v. 6). Em hebraico, essa expressão evoca, ironicamente, o nome do rei Sedecias.
O texto cria a expectativa de um enviado de Deus para o cuidado do povo. Ainda hoje, sofremos com a mesma mazela de lideranças – principalmente políticas – descompromissadas com a maior parte da população. Triste situação a que assistimos em nosso país e em outras partes do mundo: os maus pastores prejudicando o rebanho de Deus.
O Senhor, nossa justiça, age para reunir o que se dispersa e curar o que se fere. Enquanto alguns agem mal, outros ouvem a Palavra de Deus e buscam ser seu reflexo como pastores do povo, que querem a vida e não a morte.
2. II leitura (Ef 2,13-18)
A segunda leitura comunica a unidade de todos em Cristo. As segregações devem ser superadas e as diferenças diminuídas, pois o Senhor aboliu os motivos que separavam as pessoas.
Para o judaísmo antes de Jesus, os pagãos estavam longe de Deus por causa do desconhecimento da Lei e em decorrência de suas práticas idolátricas. Entretanto, Cristo trouxe os pagãos para junto de Deus (v. 13). A comunidade dos efésios experimentava o que lemos no texto. Eles se converteram à fé cristã sem passar pela circuncisão.
A situação de perturbação pela separação de Deus é revertida pelo sangue de Cristo, ou seja, por sua vida. Por isso, ele é a “paz” de todos, porque uniu o que estava dividido pelo muro dos preconceitos e do apego às normas e costumes. A existência carnal de Jesus faz que o amor supere o ódio e o perdão prevaleça sobre a punição.
A separação principal existente na comunidade dos efésios e em outras comunidades do Império Romano era a distinção entre judeus e pagãos. Então, a partir do judeu e do pagão, Cristo estabelece uma unidade de paz (v. 13.17), formando, das duas etnias, uma nova humanidade em comunhão com Deus e constituída de pessoas unidas umas às outras. A ação de Jesus veio unir e aproximar os que estavam distantes. Portanto, todos têm acesso ao Pai e podem viver na paz da sua comunhão (v. 18).
Ao contrário do que algumas mentalidades conservadoras pensam, Cristo não veio apenas para alguns nem para segregar classes de pessoas. Ele veio unir, congregar, derrubar os muros e, como diria o papa Francisco, “construir pontes”. As atitudes que vemos de exclusão social, discriminação, injustiça e preconceito não possuem inspirações na fé autenticamente cristã, mesmo quando usam o nome de Deus.
3. Evangelho (Mc 6,30-34)
Na sequência da leitura contínua do Evangelho de Marcos, lemos neste domingo o retorno dos discípulos da missão dois a dois (domingo anterior: Mc 6,7-13), o recolhimento de Jesus para um lugar à parte (v. 31) e a compaixão da multidão (v. 34).
Os apóstolos (enviados) regressam da missão e comunicam a Jesus os acontecimentos e ensinamentos (v. 30). Estavam entusiasmados com a experiência missionária e com os fatos que acompanharam a pregação deles. Então, Jesus propõe a ida a um lugar deserto, um descanso com eles, distante da multidão (v. 31-32). Era uma maneira de não apenas repousar, mas também avaliar e planejar para seguir adiante. A pausa é fundamental para melhor prosseguir. O deserto, nas Escrituras, é imagem do lugar da aliança de Deus com seu povo.
Contudo, a multidão não desiste de Jesus e dos discípulos. Muitas pessoas das cidades vizinhas, das aldeias por onde o grupo passava, e outras que ouviam falar de Jesus iam até ele para encontrá-lo e ouvi-lo. A multidão chega antes de Jesus descer da barca (v. 33).
Ao ver aquela gente, Jesus se compadece, sente pelos seus sofrimentos e necessidades. Ele se “move de compaixão” como Deus (Ex 34,5-6; Is 40,11). Marcos compara aquela gente a “ovelhas sem pastor” (v. 34) – imagem que, desde o Antigo Testamento, descreve a demanda de uma voz para nortear o rumo a seguir (Nm 27,17; Ez 34,5.8; Jr 50,6). Jesus é a Palavra de Deus encarnada que revela o mistério do amor do Pai. As pessoas precisavam desse “novo” ensinamento que consola e dá sentido à existência. Havia uma busca por parte de muitos, e estes encontravam resposta em Jesus.
O conteúdo do ensino de Jesus era o Reinado de Deus. Seu método não consistia em explicações descritivas a respeito desse mistério, e sim na vivência dele entre as pessoas. Isso atraía a multidão, cansada de tantos discursos vazios. Por isso, trata-se de um ensinamento “novo”, como de quem tem “autoridade” (Mc 1,27). A existência humana de Jesus era a explicação do Reinado de Deus.
III. PISTAS PARA REFLEXÃO
Nossas realidades eclesiais e o mundo no qual vivemos estão repletos de pessoas que vivem como “ovelhas sem pastor”, sem maiores sentidos de vida, sem propósitos nem objetivos. A Palavra de Deus propõe um recolhimento e um encontro.
Não somos apenas uma carne para cuidar; somos seres humanos vivos, livres, conscientes e desejosos de transcendência. Jesus nos convida a ir a um lugar tranquilo, sereno, para conversar, encontrar as belezas de Deus que se manifestam na vida de todos nós, na luta dos trabalhadores, do jovem em busca de emprego, no esforço de muitos por justiça… Quantas histórias lindas temos para perceber em nós e no nosso meio! Contudo, somos demasiadamente ocupados com uma vida vazia.
Assim como agiu com seus discípulos, ele também nos indica o silêncio e o recolhimento, para ouvirmos melhor nosso interior, onde Deus habita. A unidade e a reunião das “ovelhas dispersas” se iniciam dentro de nós, acolhendo nossos fragmentos e nos integrando na fé, no Senhor. A partir daí, contribuímos para que essa unidade em Cristo se realize em outras pessoas, nas nossas comunidades e na nossa sociedade.
A compaixão sentida por Jesus deve preencher nosso coração e nos deslocar para o encontro com o outro que necessita de nós; não apenas como mero sentimento, mas como jeito de ser e de agir. Há tantas pessoas por aí necessitando da compaixão de Deus!
Pe. Marcus Mareano*é presbítero da arquidiocese de Belo Horizonte, doutor em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje) e pela Universidade Católica de Lovaina (KU Leuven). Professor de Bíblia em alguns seminários. No momento, desenvolve uma pesquisa de pós-doutorado na Universidade Católica de Lovaina (KU Leuven).