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Roteiro homilético: QUARTA-FEIRA DE CINZAS

“Ficai atentos!”

I. INTRODUÇÃO GERAL

A Quarta-feira de Cinzas é marco de um tempo novo, repleto de significados e símbolos que nos preparam para a Páscoa do Senhor Jesus. Iniciamos tanto o tempo quaresmal quanto a Campanha da Fraternidade de 2024. Nesta, meditamos o tema: “Fraternidade e amizade social”, convidados pelo lema bíblico de Mateus (Mt 23,8): “Vós sois todos irmãos e irmãs”. Na primeira leitura, o profeta Joel nos convida ao arrependimento. Já na segunda leitura, Paulo nos convida a ser embaixadores da ação salvífica de Cristo, unindo as pessoas a Deus. No Evangelho, Jesus nos ensina novas práticas de piedade: a verdadeira esmola, a oração sincera e o agradável jejum.

II. COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS

1. I leitura (Jl 2,12-18)

A situação denunciada pelo profeta Joel é alarmante, por isso é necessário arrependimento e conversão. “Voltai para mim com todo o vosso coração, com jejuns, lágrimas e gemidos” (v. 12). Jejuar, chorar e gemer são atos de arrependimento, expressões de quem está arrependido pelo mal cometido. O v. 13a diz: “rasgai o coração, e não as vestes; e voltai para o Senhor, vosso Deus”. Esse é um gesto profético de ira, de não contentamento com as próprias atitudes. Em seguida, o v. 13b apresenta os atributos de Deus: “benigno, compassivo, paciente, cheio de misericórdia e inclinado a perdoar o castigo”.

Em momento algum Joel desaprova o culto, mas este deve estar acompanhado de uma convocação à interioridade: “de todo vosso coração” (v. 12). O resultado esperado do arrependimento é que talvez Adonai, o Senhor, agirá de acordo com os atributos listados anteriormente (v. 13b). O povo é chamado, por duas vezes, a arrepender-se (v. 12-13). Assim, Adonai voltará a ter misericórdia. Cabe tocar a trombeta em Sião (v. 15-17), não apenas em ocasiões militares (Os 8,1), mas também para o culto (Sl 81,4; 150,3), por ocasião da Pessach (Páscoa) e do Sukkot (Tabernáculos)Há um detalhe acerca dos convidados ao jejum: fala-se em anciãos e infantes, noivo e noiva, mas faltam o rei e os governantes. Isso nos sugere que essa profecia seja do tempo pós-exílico. Também os ministros sagrados choram em lamentos: “Onde seu Deus está?”, fazendo-nos recordar o livro dos Salmos (Sl 42,4.11) e os dos profetas Miqueias (Mq 7,10) e Malaquias (Ml 2,17). O v. 18 conclui, esperançosamente, dizendo: “o Senhor encheu-se de zelo por sua terra e perdoou o seu povo”.

2. II leitura (2Cor 5,20-6,2)

Exercer a função de embaixadores significa prolongar a missão salvífica de Cristo. “Deus mesmo vos exorta” significa o respeito de Deus mesmo pela liberdade de suas criaturas. “Reconciliai-vos” é um imperativo. Paulo exorta a comunidade de Corinto à reconciliação com Deus. A comunidade é chamada a superar as barreiras, intrigas e divisões; deve tornar-se ponte entre os irmãos e Deus.

O v. 21 expande o sentido do papel de Cristo na reconciliação: “Aquele que não conhecera o pecado, Deus o fez pecado”. Cristo é reconhecido em Hebreus (Hb 4,15) como aquele que não tem pecado (cf. 1Pd 2,22; Jo 8,46; 1Jo 3,5). Entretanto, por opção de Deus (Rm 8,3), ele passou a estar naquela relação com o Pai que normalmente é resultado do pecado. Ele tornou-se parte da humanidade pecadora (Gl 3,23), a fim de que, por ele, nos tornássemos justiça de Deus.

Já em 6,1, somos chamados a colaborar com Paulo, Timóteo e Apolo na missão que eles receberam de Cristo, por comunhão. Paulo estimula os líderes da comunidade de Corinto a colaborar com a obra salvífica de Cristo. O dia da salvação se aproxima, o tempo da graça de Deus, o kairós.

3. Evangelho (Mt 6,1-6.16.18)

Mateus convida sua comunidade à prática da atenção (em grego, proséxete), que é a mesma atenção com a qual este tempo da Quaresma merece ser vivido: “Ficai atentos para não praticar a vossa justiça na frente dos homens só para serdes vistos por eles” (v. 1). Grosso modo, a ética cristã, o modus vivendi ao qual Jesus exorta seus seguidores, neste primeiro discurso de Mateus, deve ser superior à forma de viver dos seguidores da Lei. Jesus chama os discípulos e seus ouvintes a seguir a ele, a nova Lei. Por isso, Jesus está como um novo Moisés, sentado sobre a montanha e ensinando (Mt 5,1). Sentar-se é o modo como o mestre, didáskalo, ensina.

O Evangelho deste dia está inserido no “Discurso da montanha” (Mt 5-7). Do ponto de vista bíblico, poderíamos considerá-lo como uma sabedoria escatológica, ética ou também como lei – percebida como instrução (Torá) –, com vistas ao Reino vindouro, que não se impõe de maneira coercitiva, mas escatológica e misteriosamente.

Mateus oferece a seus ouvintes-leitores uma reforma nas obras de piedade: a esmola (v. 1-4), a oração (v. 5-15) e o jejum (v. 16-18). Jesus, portanto, é o novo Moisés que reformula os sistemas legais antigos com nova concepção, nova forma de viver, como se fosse vinho novo colocado em odres novos (Mt 9,17) para os novos seguidores.

A esmola é uma forma de relacionar-se com o outro que nada tem. No entanto, não pode ser realizada da mesma maneira que os outros agiam: “quando deres esmola, não toques a trombeta diante de ti, como fazem os hipócritas nas sinagogas e nas ruas, para serem elogiados pelos homens”. Jesus afirma: “Em verdade vos digo: eles já receberam a sua recompensa. Ao contrário, que a tua mão esquerda não saiba o que faz a tua direita” (v. 2-3). Jesus os convida a uma nova forma, gratuita e não retributiva, de viver a tsedaqah (termo aramaico para “justiça”, que quer dizer “esmola”). Viver a nova justiça (dikaiosyne) proposta por Jesus é viver com retidão e de forma justa, não hipócrita.

Hypókrites era um termo do teatro para significar “ator”. Ele também é usado em Mt 23 para designar os falsos intérpretes das Escrituras, os mestres religiosos que falham em sua missão. Ser hipócrita significa fazer tudo para aparecer, para tirar proveito da esmola dada. O cristão, pelo contrário, deve fazer tudo em silêncio e de forma modesta.

A oração é uma forma de relacionar-se com Deus, pelo diálogo sincero e fiel (v. 5-6). Deve ser espontânea comunhão pessoal com Deus, para nosso benefício. Ele sabe daquilo de que necessitamos. A oração alimenta nossa fé e nos insere na missão. Em Mateus, Jesus ensina, na sequência do texto, a oração espontânea do pai-nosso (v. 7-15).

O jejum é a forma de nos relacionarmos com nós mesmos, controlando nossos desejos e paixões (v. 16-18). Novamente, Mateus utiliza o termo hipócritas, referindo-se aos atores que se desfiguram histericamente, quando estão jejuando, só para se mostrarem piedosos. Essa falsa piedade não agrada a Deus nem faz bem àquele que a pratica. Pelo contrário, quando jejuar, o discípulo de Jesus deve lavar o rosto e perfumar a cabeça, retratando a alegria. Todas essas práticas de piedade, agora na perspectiva teológica do Senhor, terão sentido novo e serão recompensadas por Deus, o Pai.

III. PISTAS PARA REFLEXÃO

Perceber a relação teológica existente entre as três leituras, que convidam à penitência, ao arrependimento e à prática do amor cristão. Levar a comunidade cristã às verdadeiras práticas de piedade: esmola, oração e jejum. Propor a leitura e meditação da Campanha da Fraternidade, que visa à vida fraterna na comunidade de fé.

Pe. Junior Vasconcelos do Amaral* é presbítero da arquidiocese de Belo Horizonte-MG e vigário episcopal da Região Episcopal Nossa Senhora da Esperança. Doutor em Teologia Bíblica pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje – BH), realizou parte de seus estudo de doutorado na modalidade “sanduíche”, cursando Narratologia Bíblica na Université Catholique de Louvain (Louvain-la-Neuve, Bélgica). Atualmente, é professor na PUC-Minas, em BH, e pesquisa sobre psicanálise e Bíblia. E-mail: jvsamaral@yahoo.com.br

Fonte: Vida Pastoral

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